Entre um técnico que classificou Marrocos para a Copa do Mundo, mas estava brigado com um dos craques do time, e fazer a vontade da torcida, a federação marroquina optou pela segunda opção. O enredo parece de clube brasileiro que vai ser rebaixado, mas funcionou para Marrocos, a seleção que surpreendeu o mundo na Copa do Mundo ao eliminar a Espanha, na terça-feira (6), e se classificar às quartas de final.

O treinador, no caso, é Walid Regragui, que nasceu na França, fez carreira como jogador em clubes de segunda divisão da Espanha e da França, foi da seleção marroquina durante toda a primeira década dos anos 2000, e, recentemente, levou o Wydad Casablanca ao título da Champions League africana.

Convencendo um craque a marcarCom perfil agregador, e adoração da torcida marroquina, foi a escolha natural quando o bósnio Vahid Halilhodzic foi demitido da seleção. Responsável pela classificação à Copa, ele vinha batendo de frente com estrelas como Ziyech, do Chelsea, que chegou a ser cortado. Halilhodzic reclamou publicamente que Ziyech chegou atrasado a uma convocação e alegou falsamente estar machucado para não jogar um amistoso. “Para mim, a seleção está acima de tudo e ninguém pode torná-la refém”, disse o técnico na época.

Regragui chegou pregando o oposto. “Há treinadores que falam ‘todos são iguais’. Isso é mentira. No PSG, não são todos iguais”, afirmou na coletiva de imprensa após a classificação sobre a Espanha. O PSG é o clube de Hakimi, o lateral-direito e craque do time, e um dos que tem tratamento “carinhoso” na seleção.

O modelo “família Regragui” deu certo tão certo que Ziyech até aceita voltar para marcar. Esse, aliás, é o perfil da equipe que surpreendeu no Qatar: uma seleção reativa, que se fecha quando não tem a bola e tenta o bote rápido quando a recupera.

O Marrocos tem, com a Espanha, uma das menores fronteiras do mundo, de apenas 15 quilômetros. Separado do restante do continente europeu pelo Estreito de Gibraltar, o país africano tem enormes comunidades na Europa Ocidental. Os marroquinos são a maior população estrangeira da Espanha e da Bélgica, a segunda maior da França, e a terceira na Itália e na Holanda. Isso sem contar seus filhos nascidos nesses países e os imigrantes com dupla nacionalidade.

A seleção marroquina que joga a Copa do Mundo é formada especialmente por esses filhos de imigrantes. É o caso de Hakimi, que nasceu em Madri, cresceu em Getafe, na região metropolitana da capital espanhola, e fez base no Real Madrid. Filho de uma empregada doméstica e de um vendedor de rua, nunca se identificou como espanhol, e preferiu representar Marrocos.

Ziyech tem história parecida. Nasceu na Holanda, foi formado pelo Ajax, mas chegou a defender a seleção holandesa nas categorias de base, até o sub-21. Quando recebeu a oportunidade de defender a equipe principal do Marrocos, aos 21 anos, não teve dúvidas. “Eu nasci na Holanda, mas minhas raízes estão lá no Marrocos. Meu pai está enterrado lá e as pessoas gostam muito de mim estão lá. Aqui parece que sempre tentam encontrar algo negativo”, disse ele na época.

A lista de imigrantes na seleção marroquina é enorme. Inclui, entre outros, o volante Amrabat, da Fiorentina, e o lateral-direito/esquerdo Mazraoui, do Bayern de Munique, ambos nascidos na Holanda, o zagueiro Saiss, francês de nascimento, e o atacante Cheddira, italiano. Herói da classificação, o goleiro Bono nasceu no Canadá.

Mesmo jogando na segunda divisão da Itália, em um clube que até recentemente estava na quarta divisão, Cheddira só fez sua estreia por Marrocos recentemente, em setembro, já em um movimento do país de buscar atletas de origem marroquina em clubes europeus.

Ao longo dos anos, muitos escaparam. Dois exemplos notórios são Chadli e Fellaini, que um dia já foram da “promissora geração belga”. Mas, só nesta Copa, quatro jogadores da seleção marroquina são nascidos exatamente na Bélgica: Amallah, Chair, El Khannous e Zaroury.

Este último, atacante de 22 anos do Burnley, da Inglaterra, chegou a jogar pela Bélgica até a seleção sub-21. Sua primeira convocação para defender Marrocos foi exatamente para a Copa do Mundo, depois que Amine Harit, um meia com mais de 20 jogos pelas seleções de base da França, se machucou.

MAGHREB

Esta é a quarta vez que um país africano chega às quartas de final da Copa do Mundo, mas só a primeira que um país árabe vai tão longe no Mundial, exatamente na primeira edição do torneio disputada em uma nação árabe, o Qatar.

No vestiário, após a classificação, os jogadores ficaram assistindo a vídeos de comemorações pelo mundo. “Claro, porque fizemos história. Futebol para Marrocos é incrível. Hoje, assistimos a vídeos da festa nas ruas, crianças, pessoas idosas. Fizemos pessoas felizes. Hoje [terça-feira (6)], vimos o vídeo com todos os marroquinos festejando”, descreveu o atacante Boufal.

Nos estádios da Copa, a torcida marroquina não canta Maroc ou Morocco no estádio e, sim, “Maghreb”, que, em árabe, significa a “terra a oeste”. Assim é chamado o território no norte da África que engloba várias nações — Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia,

Mauritânia e os territórios disputados do Saara Ocidental.

Mas o Marrocos é que leva o nome, em árabe, de Al-Maghrib. Apesar de o Magreb ser uma região que engloba mais nações, ele é o “nome” de Marrocos em árabe.

“Mostramos que todo marroquino é marroquino. Quando está na seleção, quer morrer por este país. Eu sou nascido na França. Mas e daí? Quando você está jogando por Marrocos, nada disso importa. Vejo os argelinos torcendo para nós, tunisianos, africanos, vamos fazer história, inchala (tomara, em árabe)”, falou Regragui após a vitória sobre a Espanha.

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