STF testa protagonismo em ação contra golpismo

Liderado pelo ministro Alexandre de Moraes, o Supremo Tribunal Federal (STF) testa no Brasil um protagonismo inédito na defesa da democracia. A tarefa, contudo, não se dá sem atropelos, e são inevitáveis os debates sobre riscos e limites da reação judicial.

Até onde o STF pode avançar na atuação emergencial contra uma ameaça de golpe de Estado? Em que ponto o tribunal deixa de ser parte da solução e se torna vetor do problema? O preço da ação desmedida é tão alto quanto o da omissão pura e simples?

O arsenal utilizado pela corte é amplo. Inclui suspensão de perfis online de quem dissemina desinformação, prega ódio ou incita crimes; bloqueio de contas bancárias de financiadores de atos golpistas; e prisões, muitas das quais provisórias.

Em muitos casos, as determinações foram, no mínimo, polêmicas. Por exemplo, Moraes afastou Ibaneis Rocha (MDB) do cargo de governador do Distrito Federal sem que esse pedido tenha sido feito por órgãos de investigação.

O ministro também contrariou recomendação do Ministério Público Federal ao manter a prisão de certos investigados pelos atos de 8 de janeiro, quando apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) depredaram as sedes dos três Poderes, em Brasília.

Em outra frente, desde o ano passado, Moraes tem ordenado a derrubada de contas em redes sociais sem critérios claros. De acordo com alguns críticos, seria possível falar em censura do Judiciário.

Um deles é o jornalista Glenn Greenwald, para quem a ação de Moraes não tem paralelos no mundo e representa uma dupla ameaça: à liberdade de expressão e ao devido processo legal.

Especialistas ouvidos pela reportagem, porém, afirmam que não é tão simples; embora seja possível apontar equívocos específicos, isso não quer dizer que o conjunto da obra esteja necessariamente errado.

“No varejo, caso por caso, é claro que vamos poder discordar de muitas decisões, ainda que seja prematuro cravar uma conclusão sobre ilegalidade ou abuso”, diz Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da USP e colunista da Folha.

Dito isso, Mendes considera que Moraes conseguiu conter muitos dos ataques à democracia, apesar de o Brasil não ter estrutura regulatória para lidar com a disseminação da desinformação e em meio a um vácuo institucional, já que a Procuradoria-Geral da República (PGR), sob comando de Augusto Aras, manteve-se inerte na maior parte do tempo.

“O que se pode dizer é que Moraes inovou. E inovação jurídica sempre gera controvérsia, resistência”, afirma Mendes. “Isso é sempre ilegal? Não. Isso significa que a corte tem carta-branca para fazer o que bem entender? Também não. Entre as duas coisas, há uma ampla zona cinzenta que vai tomar tempo para se consolidar.”

Não se trata de inovação apenas para o padrão nacional; trata-se de novidade mundial no combate ao golpismo.

“O fato de essas medidas não serem frequentemente adotadas no direito comparado não diz nada sobre se elas são lícitas ou não no Brasil e se seriam lícitas ou não em outros países caso eles vivessem problemas como o nosso”, diz Thomas Bustamante, professor de teoria do direito na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

“O tipo de ataque que a gente está sofrendo não está bem mapeado. Não existem esquemas conceituais prontos, precedentes, normas jurídicas explícitas. E os padrões de resposta, dentro da legalidade, são desafiadores em qualquer lugar”, afirma Bustamante.

De acordo com ele, especialistas de outros países olham com atenção para o caso brasileiro, já que o golpismo não é peculiaridade de bolsonaristas –basta lembrar de Donald Trump e o tumulto após sua derrota na eleição presidencial dos Estados Unidos.

Como observou Oscar Vilhena Vieira em sua coluna na Folha, veio do nazista Joseph Goebbels este alerta: “Uma das melhores pilhérias sobre a democracia sempre será a de que ela própria proporcionou aos seus mortais inimigos os meios pelos quais foi aniquilada”.

Por isso, mesmo especialistas como Diego Werneck Arguelhes, que apontam problemas nas decisões de Moraes, consideram que o risco da inação é maior que o de eventuais abusos.

“A ideia de ditadura judicial é só uma metáfora”, diz Arguelhes, que é professor de direito do Insper e um dos fundadores do blog Supra, sobre o STF. “Não existe risco de ditadura judicial, e a gente nem sabe como isso seria. A ditadura real que queriam implantar é a do dia 8 de janeiro, e essa a gente sabe como funciona.”

Mas isso não significa que os problemas citados por ele sejam irrelevantes. Um deles é a suspensão de Ibaneis. Para Arguelhes, ela não está devidamente embasada do ponto de vista jurídico nem teve sua necessidade justificada.

Outro é a derrubada de perfis online. “Uma coisa é, no calor do momento, interromper a atuação de quem está incentivando a invasão. Outra é suspender por tempo indeterminado”, diz.

Daí a concluir que exista uma ameaça à liberdade de expressão, como faz Glenn Greenwald, vai uma distância que nem todos se dispõem a percorrer. Conrado Hübner Mendes, por exemplo, diz que a jurisprudência nesse tema é instável no Judiciário brasileiro, mas que o caso dos golpistas não é tão complexo.

“Existem controvérsias bem mais complicadas. Quando a liberdade de expressão se choca com o direito à honra ou à privacidade, por exemplo, temos um conflito delicado. O dos extremistas não. Só que precisa avaliar o contexto da manifestação, a capacidade de disseminação e o impacto que a pessoa exerce”, diz Mendes.

Ainda assim, não há consenso sobre o uso que Moraes faz de um instrumento jurídico para combater os extremistas: a medida cautelar, que, na área penal, serve para garantir a aplicação da lei, assegurar a investigação ou evitar a prática de infrações penais.

Por definição, a cautelar é determinada antes de haver julgamento definitivo e, em muitos casos, sem que a pessoa possa se defender num primeiro momento. Até aí, jogo jogado. O problema aparece quando essas ordens, que deveriam ser provisórias, se tornam duradouras –uma espécie de atalho para a pena.

“A manutenção de prisões preventivas, que devem ser medidas muito excepcionais e de curta duração, é um ponto questionável”, diz Raquel Scalcon, advogada criminalista e professora da FGV Direito SP.

“Mas é preciso lembrar que o recurso excessivo às prisões cautelares é um triste sintoma do sistema de Justiça criminal brasileiro como um todo”, afirma.

Mas não são só as prisões. Moraes tem recorrido à chamada cautelar atípica: em vez de usar uma das medidas listadas no Código de Processo Penal –como a suspensão da função pública, dirigida a Ibaneis—, ele impõe uma nova cautelar ao investigado. É o caso da derrubada de perfis de redes sociais, não prevista expressamente no código.

O fato de a medida ser atípica não a torna ilegal, mas seu uso é questionável: “Tem uma discussão sobre isso, mas eu entendo que uma cautelar atípica não poderia ser fixada. Se quisermos novas cautelares, precisamos de mudança legislativa”, diz Scalcon.

Aumentando a confusão, Moraes tem usado como parâmetro para a derrubada de perfis a resolução 23.714 do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), cuja constitucionalidade está em discussão no STF.

Baixada às vésperas do segundo turno de 2022, ela considera que a disseminação de fake news demanda reações como a suspensão de contas online e estabelece regras como multa de até R$ 150 mil por hora de descumprimento.

Só que Moraes, além de membro do STF, é presidente do TSE, o que leva muita gente a misturar os dois chapéus do ministro e imaginar que ele tenha “superpoderes” permanentes. Na verdade, essa é uma circunstância passageira que terminará em junho de 2024, quando ele deixará a corte eleitoral.

E, mesmo que não fosse esse o caso, Moraes não age sozinho. Ele tem respaldo do plenário do TSE e do STF –o que, no mínimo, mostra desconcentração do poder.

“Mas a confirmação do colegiado não resolve o debate, não garante que a decisão esteja correta”, diz Arguelhes, do Insper. “No calor da Lava Jato, muita gente criticava o STF por ter endossado as decisões do Sergio Moro.”

Para bolsonaristas, o respaldo não muda nada. Eles continuam vendo Moraes como alguém que desequilibrou a eleição –ainda que não existam evidências disso— e que atua “fora das quatro linhas da Constituição”, como costuma dizer o ex-presidente.

A crítica, que não diz respeito só ao conteúdo das decisões, mas também à forma, remonta a 2019, quando Dias Toffoli, então presidente do STF, abriu o inquérito das fake news e, em vez de sortear um relator, nomeou Moraes para a função.

Foi um procedimento extravagante porque, entre outros motivos, nenhum órgão investigativo pediu o inquérito. Os ministros do STF, porém, julgaram necessário reagir aos ataques que a própria corte vinha sofrendo sob as vistas grossas da PGR, ainda sob Raquel Dodge.

“A justificativa apresentada é real. Não foram justificativas inventadas, não foi uma idiossincrasia dos ministros. E cada vez isso fica mais evidente”, afirma Thomas Bustamante, da UFMG.

Para Miguel Gualano de Godoy, professor de direito constitucional da UFPR (Universidade Federal do Paraná), o STF paga o preço de um problema anterior: “A força das cortes vem de sua autoridade, dos argumentos de suas decisões e da postura séria de seus ministros. Nesses aspectos, o STF ainda deve muito”, diz.

“O STF tem atuado com firmeza para a proteção da nossa democracia. Mas sua atuação precisa ser calibrada”, afirma Godoy.

De acordo com Arguelhes, do Insper, na ausência desse ajuste, o STF vai aprofundar três problemas. O primeiro é um pragmatismo excessivo: “Desde a última década, as pessoas cada vez mais aprovam decisões com cujos resultados elas concordam”.

O segundo é a deterioração da imagem do Judiciário como Poder isento para decidir conflitos. “Várias decisões contra Bolsonaro são corretas, mas pode chegar um momento em que as pessoas vão achar que o tribunal escolhe amigos e inimigos.”

E o terceiro é saber que limites o STF respeitará quando passar o contexto de crise da democracia. “O Supremo nunca descobriu para si um poder do qual depois abriu mão”, afirma Arguelhes.

ALGUMAS DECISÕES POLÊMICAS CAPITANEADAS POR ALEXANDRE DE MORAES NO TSE E NO STF

  • Inquérito das fake news, mantido contra a vontade da PGR
  • Censura à revista Crusoé e ao site O Antagonista por reportagens que citavam Dias Toffoli
  • Censura ao jornal Gazeta do Povo durante as eleições
  • Busca e apreensão contra empresários por conversas de teor golpista no WhatsApp, tendo por base apenas uma reportagem
  • Relator do julgamento que determinou prisão de Daniel Silveira (PTB-RJ), deputado federal bolsonarista que fez ataques a membros do STF
  • Suspensão de diversos perfis de redes sociais por ameaças a ministros do STF ou declarações golpistas
  • Suspensão de diversos perfis de redes sociais durante a eleição
  • Suspensão de perfis e canais do PCO (Partido da Causa Operária)
  • Suspensão de Ibaneis Rocha (MDB) do cargo de governador do DF
  • Manutenção de prisões preventivas contra orientação do MPF
  • Conversão de prisão flagrante em preventiva sem pedido de órgãos de investigação

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