Mesmo com a posição firme do governo na defesa de uma reforma tributária sem exceções, setores já se articulam para tentar obter um tratamento favorecido no texto em meio a temores de aumento da carga tributária e elevação de custos.
Desde que as discussões foram retomadas no começo deste ano, a principal voz contra a adoção de uma diferenciação entre setores é a do secretário extraordinário da Reforma Tributária, Bernard Appy.
Em entrevista à Folha no começo de março, ele defendeu que a reforma seja o mais homogênea possível e afirmou que “quanto mais exceção tiver […], maior tem que ser a alíquota básica para poder manter a carga tributária”.
Na terça-feira (21), em reunião da FPE (Frente Parlamentar do Empreendedorismo), Appy voltou a defender que o texto evite ao máximo as flexibilizações. “A gente sabe que, por uma questão política, vai acabar tendo algumas exceções”, disse. “O ideal é que seja o mínimo possível, a regra mais homogênea possível e desenhada de um jeito que dê o mínimo possível de distorções.”
No dia seguinte, em evento da CNSaúde (Confederação Nacional de Saúde), ele reconheceu ser “muito provável que acabe tendo alguns tratamentos diferenciados para alguns setores.” “Muito provavelmente o setor de saúde vai estar entre esses setores que vão ter um tratamento diferenciado, já tem sinalizações disso”, complementou. “A decisão se vai ter ou não vai ter será do Congresso Nacional.”
No grupo de trabalho que discute o tema, as confederações setoriais começam a ser ouvidas em audiências nesta semana –na quarta-feira (29) há ainda a previsão de participação da ministra Simone Tebet (Planejamento e Orçamento).
Na primeira tentativa de discutir a reforma, em 2021, um rol de setores recebeu a sinalização de que poderia ter algum tratamento diferenciado no texto final.
Atividades agropecuárias, agroindustriais, pesqueiras e florestais, educação, saúde, transporte público coletivo e rodoviário de cargas e entidades beneficentes de assistência social são citadas no substitutivo apresentado pelo deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), relator na comissão mista que analisou o mérito das PECs 45, do deputado Baleia Rossi (MDB-SP), e 110, do Senado. O colegiado acabou extinto em maio de 2021 por falta de previsão regimental, nas palavras do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
Nas discussões de 2023, saúde, educação e agronegócio são citados como potenciais exceções a constar do texto final de Ribeiro, escolhido novamente para relatar a PEC no grupo de trabalho criado pelo mesmo Lira na Câmara.
Os setores defendem a necessidade de um tratamento diferenciado. A CNSaúde encomendou um estudo à LCA Consultores que apontou para um aumento de carga de 9,9% para 25% a 32%, caso seja adotada uma alíquota única de impostos.
“Os argumentos do secretário são de que haverá aumento do PIB e que a facilitação burocrática do sistema trariam ganhos. Só que esses ganhos são possíveis ou não”, diz o presidente da confederação, Breno Monteiro.
Ele argumenta que o setor de saúde tem desequilíbrios, com operadoras de planos apresentando déficit e aumento de custo de insumos por causa da pandemia. “Se a gente ainda tiver que pagar mais imposto seria mais um complicador para o sistema neste momento.”
“A gente precisa ser tratado diferente porque não é um pedido do sistema de saúde brasileiro, isso é a experiência internacional [com o] Imposto Único de Valor Agregado, [que] mostra que em 80% dos países há esse tratamento.”
Com um eventual aumento e repasse de custos, complementa, poderia haver uma fuga de pessoas do setor privado para o sistema público de saúde.
Na educação, a argumentação segue linha parecida. A professora Amábile Pacios, do Fórum das Entidades Representativas do Ensino Superior Particular, afirma que o setor privado, com a educação básica e o ensino superior, desobriga o Estado a arcar com R$ 280 bilhões. “Isso significa que, se a gente cessar as nossas atividades, esse é o dinheiro que o governo tem que pôr [na rede pública] para manter as crianças e jovens que estão estudando conosco”, afirma.
“Não pode mais haver oneração para a gente, porque significaria diretamente aumento de mensalidade.” Pacios também defende que o tratamento diferenciado seja realmente diferenciado. “A gente sempre procura saber o que significa o diferenciado. Porque, de repente, ele pode dar um aumento de 20% para todo mundo e 19% para a educação e chamar isso de diferenciado.”
O agro também cita a experiência internacional para defender que o setor tenha um regime especial na reforma.
“A gente fez levantamentos que mostram que países que usam o IVA, principalmente os da OCDE, têm tratamento favorecido para as atividades agropecuárias. De 35 países, quatro não têm alíquota favorecida para o agro, que são Chile, Dinamarca, Estônia e Nova Zelândia. São países que não têm tradição de produção agropecuária como o Brasil”, afirma Renato Conchon, coordenador do núcleo econômico da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil).
Ele diz que esse tratamento é necessário para reduzir o preço para a população e garantir a competitividade dos produtos no mercado internacional. “É esse modelo que a gente quer aplicar aqui.”
No relatório de 2021 da PEC 45, o regime especial para o setor tinha caráter temporário, o que é criticado por Conchon. “Esse tratamento diferenciado estaria previsto apenas durante a transição dos impostos.
Depois que o IBS [Imposto sobre Bens e Serviços] começasse a valer, essa transição acabaria e seria alíquota única para todo mundo. É o que a gente não quer. A gente quer o tratamento favorecido para o agro e para os outros setores de maneira permanente na Constituição.”
Ele cita outro problema tributário do setor, que seria a cobrança do ITR (Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural). “A gente vai continuar com esse problema porque a discussão não está sendo tocada neste momento no Congresso Nacional. Ou seja, está impondo o aumento de carga tributária na reforma tributária do consumo, e os nossos atuais problemas, um deles o ITR, não vai ser resolvido.”
No caso do setor de transportes, que também teve previsão de regime especial transitório no substitutivo de 2021, a crítica envolve a falta de transparência sobre os dados. “A gente pede desde o governo anterior que o Appy demonstre os números, que a Receita Federal demonstre os números para justificar a alíquota. Por que tem que ser 25% ou 32%, como diz a Receita?”, questiona o presidente da CNT (Confederação Nacional do Transporte), Vander Francisco Costa.
“Quem tem benefício para atrair investimento é a indústria. A reforma vem para poder reduzir a carga tributária da indústria. A gente não tem nada contra isso. Nós estamos até dispostos a pagar um pouco mais de tributo para poder ter uma indústria mais pujante. Mas beneficiar a indústria e nos prejudicar, em vez de simplificar o sistema, complicando mais o sistema com um período?”, contesta.
Para ele, a desoneração da folha de pagamentos ajudaria a compensar esse aumento de carga tributária que seria decorrente da reforma, nos cálculos do setor. “São duas situações distintas. No transporte de cargas, o aumento a gente vai repassar para a escala seguinte, vai onerar o produto final. Mas passageiro é complicado”, diz. “Se você pegar uma alíquota de transporte de passageiro urbano, que hoje paga ISS de 3% a 5%, e jogar 25% [de tributo], aumenta a passagem de ônibus de 20% a 30%. É um problema.”
A CNT defende três alíquotas: uma básica, que é para a maior parte dos setores; uma alíquota menor para serviços essenciais como saúde, educação e transporte de passageiros, e uma alíquota seletiva para majorar o imposto de itens como tabaco e bebida alcoólica.
A desoneração sobre salários é defendida pelos setores de serviços e comércio. Luigi Nese, presidente da CNS (Confederação Nacional de Serviços), afirma que a carga maior sobre o setor é salário, que, diz, pode representar até 80% do custo. “Se não fizer a desoneração da folha de pagamento, essa reforma tributária não passa de jeito nenhum. A carga sobre o setor de serviços, e principalmente sobre o setor de profissionais liberais, vai ser enorme.”
Ele avalia que a medida minimizaria o impacto sobre o setor de serviços, reduzindo custos e compensando o aumento da carga tributária estimado pelo setor. Nese defende também a criação de um imposto sobre movimentação financeira, a exemplo da extinta CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira). “Não está se discutindo o imposto que hoje todo mundo quer cobrar sobre as grandes movimentações financeiras que são feitas no Google, na Amazon, na Microsoft.”
Guilherme Mercês, diretor de Economia e Inovação da CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo), disse ainda não haver uma forma clara e objetiva de garantir a cumulatividade plena. “Vai depender de regulamentações de leis complementares, como é hoje. Foram saindo diversas leis ou ficaram algumas brechas que geraram insegurança jurídica.”
Ele diz que a não cumulatividade plena é importante para não haver dúvida sobre onde a empresa vai obter crédito. Além disso, argumenta ser importante manter o modelo do Simples Nacional.
“O que nos preocupa aqui? Se eu lanço outro modelo onde eu vou ter aproveitamento total de créditos e eu deixo o Simples como está hoje, eu meio que vou deixar as empresas do Simples numa situação muito desfavorável em relação àquelas outras que têm crédito no modelo novo”, disse. “Ninguém vai querer comprar das empresas do Simples, porque vai comprar sem crédito deles. Você cria um problema de mercado para as empresas do Simples.”
Na Indústria, setor mais favorável ao modelo de reforma discutido hoje no Congresso e apoiado pelo governo, a expectativa é que sejam eliminadas distorções. “Tecnicamente, não tenho dúvidas de que o ideal é a alíquota única. Mas politicamente é difícil. A CNI entende que alguns tratamentos favorecidos fazem sentido. Saúde, serviço de educação, agropecuária e agroindústria, construção civil, sistema financeiro têm que ter um tratamento diferente”, afirma o gerente-executivo de Economia, Mário Sérgio Telles.
Ele critica a cumulatividade de impostos na cadeia. “A gente tem um estudo que mostra que a Indústria chega com 7,4% de resíduo na ponta. O importado vem com zero. A gente começa a competir perdendo de 7%. Agricultura e serviço têm mais resíduo. O produto agropecuário que chega na ponta tem 12% e o serviço, 11,6%”, complementa.
Para Venilton Tadini, presidente-executivo da Abdib (Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base), a preocupação do setor é com aumento do preço dos serviços e com o destino de créditos tributários. “Tem muito investimento a ser feito nessas concessões e isso tem que partir do princípio que os créditos vão ser rapidamente utilizados”, disse. “Dependendo de cada empresa, do projeto que ela tem, ela tem uma incidência distinta. A preocupação com infraestrutura é com relação a serviço público e com a indústria de construção, que pega também o custo de investimento.”
O que querem os setores Indústria e Infraestrutura – Querem acabar com distorções; Indústria critica cumulatividade
Comércio e Serviços – Defende desoneração da folha de pagamento, que, na visão do setor, compensaria aumento da carga tributária estimada
Transportes – Discorda da transição e defende a prorrogação da desoneração da folha de pagamento para compensar o setor; defende ainda um modelo de três alíquotas
Agronegócio – Quer tratamento diferenciado como adotado em parte de países da OCDE, rejeita caráter transitório do regime especial e quer discutir ITR (imposto sobre propriedade territorial rural)
Saúde – Cita isenção em quase 80% dos países e alíquota diferenciada em outros 6% pela essencialidade do setor
Educação – Defende adoção de alíquota menor para o setor -e que seja expressiva