A necessidade de normalizar e despolitizar a relação com os militares é vista por auxiliares do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como um dos maiores desafios do mandato.
O diagnóstico —feito desde a campanha eleitoral— levou Lula a ligar para o ex-ministro do TCU (Tribunal de Contas da União) José Múcio Monteiro poucos dias depois do resultado do segundo turno. Na ocasião, Lula disse a Múcio que precisaria dele no comando do Ministério da Defesa.
Múcio foi um dos primeiros titulares da Esplanada dos Ministérios anunciados oficialmente. Desde novembro, começou a trabalhar para construir pontes entre o petista e a cúpula das Forças Armadas. A tarefa não foi fácil: o então comandante da Marinha, Almir Garnier Santos, recusou se reunir com Múcio.
Os cem primeiros dias de Lula foram marcados por uma traumática troca no comando do Exército, ataques golpistas em 8 de janeiro e crise sobre o futuro do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL).
O balanço de integrantes do governo é que Lula, no começo da gestão, iniciou a despolitização nas Forças Armadas, conseguiu apaziguar a relação com os militares e agora quer garantir investimentos na indústria de Defesa como principal aposta para melhorar a relação com os quartéis.
Nas palavras de Lula, seu principal compromisso com as Forças Armadas é a despolitização. “Eu tenho a palavra das três Forças de que vai ter um esforço muito grande para despolitizar as Forças Armadas. Sabe, inclusive, nós vamos discutir com o Congresso Nacional, temos interesse de mandar o projeto de lei, sabe, dizendo que quem quiser ser candidato a alguma coisa, vá para reserva. O que não pode é ficar utilizando as Forças Armadas para fazer política”, afirmou o presidente em entrevista ao site Brasil 247.
O projeto a que Lula se refere foi costurado por Múcio e pelos comandantes militares numa PEC (proposta de emenda à Constituição) que atualmente está em análise no Palácio do Planalto.
Ela é também uma das grandes apostas da gestão de Múcio à frente da Defesa.
O ministro disse à Folha que houve “muitos avanços nas relações entre governo e militares” nos cem dias de governo.
“Sobre a despolitização das Forças Armadas, a aprovação da PEC sugerida pelo Ministério da Defesa será um passo importante nesse sentido. Contamos com o apoio dos parlamentares”, completou.
Um gesto de aproximação aguardado é uma reunião de Lula com o Alto Comando do Exército e da Aeronáutica, previsto para o retorno da viagem do petista à China.
O Exército, Força que mais trouxe ruído no início do governo, terá em abril uma janela de oportunidade para restabelecer um nível de confiança com Lula: além do almoço do presidente com generais, 6 dos 8 comandos de área devem se modificados, dando início oficial à nova gestão do comandante Tomás Paiva.
O principal ponto de tensão nesses cem dias de governo foi justamente a saída do ex-comandante do Exército, general Júlio Cesar de Arruda, que culminou na nomeação de Paiva.
A queda ocorreu em meio a uma crise de confiança que contou com dois pontos principais: os ataques do dia 8 de janeiro em Brasília e a promoção de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, para comandar um batalhão de tropa de elite em Goiânia (GO).
O inconformismo com a derrota de Bolsonaro entre uma parcela de seus eleitores, com pedidos de intervenção militar, desencadeou os ataques golpistas de invasão e depredação às sedes dos três Poderes.
À época, petistas e aliados de Lula puseram parte da culpa dos atos no ministro da Defesa, que vinha defendendo a desmobilização gradual e negociada dos acampamentos bolsonaristas montados em frente a quartéis pelo país. Múcio passou por intensa fritura, até que o presidente expressou publicamente sua confiança no titular da Defesa e disse que não o demitiria.
“Quem coloca ministro e tira ministro é o presidente da República. O Zé Múcio fui eu quem trouxe para cá, ele vai continuar sendo meu ministro, porque eu confio nele”, afirmou Lula em café da manhã com jornalistas, quatro dias após os atos golpistas.
Além da pressão diante dos atos golpistas, havia desconforto no Palácio do Planalto com a promoção de Mauro Cid para o comando do 1º Batalhão de Ações de Comando, em Goiânia. Aliados de Lula vinham tentando revertê-la, mas havia resistência de Arruda, então comandante do Exército.
Causou incômodo no governo o fato de Cid ser investigado pela Polícia Federal por transações suspeitas realizadas por ele no período em que era ajudante de ordens de Bolsonaro, como revelou a Folha.
Arruda não cumpriu a ordem de reverter a nomeação de Cid, dada por Múcio a pedido de Lula. Assim, 20 dias após sua nomeação, o general foi demitido e o ministro da Defesa nomeou Tomás Paiva em seu lugar.
Paiva, ainda comandante militar do Sudeste, havia feito um discurso em São Paulo defendendo à tropa que o resultado das urnas fosse respeitado, independentemente do presidente que está no cargo.
O vídeo circulou entre autoridades e serviu para chancelar sua ida para o Alto Comando.
Dias depois, veio a público um áudio do general em que ele diz a seus subordinados que a vitória eleitoral de Lula foi indesejada pela maioria dos militares.
“Não dá para falar com certeza que houve qualquer tipo de irregularidade [na eleição]. Infelizmente, foi o resultado que, para a maioria de nós, foi indesejado, mas aconteceu”, disse.
A declaração, dada a oficiais do Comando Militar do Sudeste, trouxe desgaste ao general, mas não foi suficiente para tirá-lo do posto.
Também na tentativa de reconstruir as pontes, Lula acenou aos comandantes das Forças Armadas que fará esforço para aumentar os investimentos na Base Industrial de Defesa.
O presidente escalou Múcio, o vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Geraldo Alckmin (PSB), e o ex-presidente do BNDES Luciano Coutinho para criar um plano de recuperação das empresas de defesa.
O foco inicial será reerguer a Avibras —empresa do setor aeroespacial que está em recuperação judicial.