Dia dos Pais: trabalhadores nas ruas vivem longas jornadas para salvar os filhos da fome

Todos os dias, por volta das oito da manhã, Eduardo Ferreira, de 36 anos, caminha para o ponto de ônibus que o leva até a loja de doces em atacado, lugar onde compra mercadorias para revender em bares e restaurantes de Brasília. O dia dos pais continua a ser de trabalho para ele e para outros homens que vivem longas jornadas nas ruas para salvar os filhos da fome.

Morando de favor na casa da mãe, ele espera conseguir fechar o dia sem nenhuma balinha sobrando nas mãos, pois só assim pode pagar integralmente a pensão alimentícia de sua filha de 6 anos, que mora com a mãe no Jardim Ingá.

O trabalho informal de vendedor nas ruas mascara o diploma de geografia que Eduardo lutou para conquistar. Vendendo blocos de papel, ele conseguiu completar a graduação, mas não pôde prestar concurso para atuar na área, pois um filho estava a caminho e o dinheiro necessitava urgência.

Os exames da gravidez foram feitos com a quantia que conseguia arrecadar nos semáforos a partir da venda de sacos de lixo. Além de passar o dia inteiro caminhando, Eduardo precisa enfrentar desafios, como a hostilidade de algumas pessoas.

“É com a jujuba que eu vendo”

“Sempre escuto falarem ‘será que é pra pagar a pensão mesmo?’. As pessoas sempre duvidam. falam que é charlate. Eu tenho a consciência que eu ajudo a minha filha é com a jujuba que eu vendo. Eu falo a verdade”.

Com a pensão que paga para a filha, o valor das despesas de casa e a tarifa das passagens de ônibus, quase não sobra dinheiro no fim do mês.

Eduardo é um dos mais de 510 mil brasilienses em situação irregular no mercado de trabalho informal, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) levantados no final do ano passado.

Com a chegada do Dia dos Pais, o homem relembra a história que o trouxe até essa situação. O pai, vinte anos mais jovem que a mãe, decidiu não criar Eduardo por medo de arriscar perder o que havia conquistado na juventude, já que vivia em condições melhores que a ex-companheira.

“Ele sumiu pra não ter que pagar pensão. Mas a polícia bateu no trabalho dele, e ele teve que pagar. Mesmo assim, ele não deixava eu frequentar a casa dele. Disse que tinha medo que eu me interessasse nas coisas dele e me acomodasse. Mas hoje ele tem medo é que eu tire a neta dele de perto dele”, conta.

Entre tantos receios, Eduardo se sensibiliza ao pensar na possibilidade de acabar seguindo os caminhos morais do pai, mas sonha em conseguir uma qualidade de vida melhor para poder estar mais perto da filha. “Quero ter liberdade no sentido de eu ter meu canto e chamar ela a hora que eu quisesse pra passar comigo”.

Chocolate e lembranças

Assim como Eduardo, Wellington dos Santos, de 38 anos, vende mercadorias nas ruas do DF como forma de sustento da família.

Impossibilitado de voltar a trabalhar como motorista de uma papelaria por conta de um acidente sofrido em 2021, passa cerca de 15 horas por dia no Plano Piloto e nas cidades satélites tentando esvaziar a caixa de chocolates que carrega na mão esquerda.

A batida da van da empresa em que era fichado, ocasionou uma cirurgia no pulmão há exatamente 1 ano, no mesmo mês em que perdeu seu pai.

Ainda com dificuldade em carregar peso do lado direito do corpo, Wellington sai cedo de Planaltina para trabalhar, deixando em casa a esposa e a filha de 3 anos – a mais nova entre quatro, nascidos em outros casamentos.

A rotina exaustiva de Wellington deve-se ao corte do auxílio-doença acidentário oferecido pelo INSS, que ele passou a receber após a cirurgia e que, de acordo com ele, teve interrupção indevida, pois não há necessidade de cumprir os 12 meses de carência.

O benefício foi concedido por 5 meses até o corte. Wellington recorreu e perdeu, mas garante que vai entrar na justiça novamente.

“Perdi o auxílio devido ao fato de que eles alegaram que não tem 12 meses que eu estou fichado na papelaria. Sendo que quando fiz a cirurgia eu recebi ainda cinco meses. Então, se eu não tenho 12 meses de serviço não trabalhado, eu não teria direito a esses outros cinco meses assim que eu saí da cirurgia. Não faz sentido. Mas eu vou tentar de novo”, comenta esperançoso.

Fome

Com 1,71m de altura, durante a internação no Hospital Regional de Planaltina, chegou a pesar 35 quilos. Já em casa, sem poder contar com o benefício, chegou a não ter comida nenhuma na geladeira. “Cara, é muito difícil você ver o seu filho com fome querendo comer e você não ter pra dar, não saber nem da onde tirar. Eu prefiro mil vezes passar fome pro meu filho poder comer, estar com frio pra que meu filho esteja quente, estar mal vestido pra ele poder ter o que vestir, estar cansado pra ele poder descansar”, revela com lágrimas nos olhos cansados.

Wellington suspira ao lembrar que esse é o primeiro dia dos pais que ele comemora sem o dele, que faleceu por parada cardiorrespiratória decorrente da doença de Chagas. “O que eu digo é: valorizem seus pais. Se eu puder ser pros meus filhos a metade do homem que meu pai foi pra mim, eu já vou estar realizado”, emociona-se.

Acidente

O benefício do INSS que Wellington perdeu deve contemplar também outras pessoas que viveram situações parecidas ocasionadas por algum acidente que incapacita o indivíduo de trabalhar. É o caso de Rafael Meira, de 26 anos, que perdeu a perna durante um acidente de carro.

Ele estava dirigindo perto de casa na época em que morava em Goiás, e quando a perna ficou presa nas ferragens do automóvel, a demora na chegada do socorro tornou a amputação inevitável. Antes de se mudar para São Sebastião, vendia fitas, velas e outros objetos em Bom Jesus da Lapa (BA), sua cidade natal.

Dia dos Pais – Rafael espera por Pix no semáforo. Foto: Malu Carvalho

Sonhando em ser bombeiro na adolescência, Rafael não completou o ensino médio, se deparando com a situação de vulnerabilidade que adentrou após não conseguir um emprego. Diariamente ele sai de casa apoiado em muletas para pedir dinheiro nos semáforos da Esplanada dos Ministérios, localizada no centro da capital do país.

“As pessoas prometem que vão me ajudar, mas só algumas me mandam Pix. Às vezes eu não consigo ganhar quase nada e volto pra casa”, revela o homem, enquanto carrega uma placa pendurada no pescoço com um pedido de doações ao lado de uma foto com os dois filhos de 2 e 3 anos.

Foto: Malu Carvalho

Enquanto aguarda o reajuste de uma prótese larga que ganhou de um hospital, Rafael caminha entre os carros sem saber se vai comemorar o dia dos pais ao lado dos filhos, que vivem com a mãe.

Ele conta que deseja aos meninos que cresçam podendo ter a oportunidade que ele nunca teve.

Meus filhos são a razão do meu viver. É por eles que estou vivo. Quero que eles estudem, façam faculdade para terem uma vida melhor”. Como presente de dia dos pais, ele sonha: “eu queria as duas pernas, pra poder andar correndo.

Rafael Meira

Palhaçadas

A mesma vontade que Rafael tem de não ficar parado, também é compartilhada por Júlio César Macedo, um palhaço de 56 anos, nascido no Rio de Janeiro.

“Eu não sei fazer mais nada. Só sei ser palhaço”, brinca Mandioca Frita, como é conhecido por seu personagem nas ruas. Com o rosto pintado de branco e vermelho, chapéu na cabeça e uma maleta apoiada no picadeiro estendido no meio do Parque Ana Lídia, Júlio conta inspirado que sua vida serve de exemplo para os cinco filhos, que também são envolvidos com arte de rua.

“Quando algum deles se apresenta e me liga pra agradecer pelo pai que eu sou, nem sei como descrever o tamanho da minha felicidade”.

Júlio foi uma criança que vivia nas ruas de Copacabana, bairro nobre do Rio de Janeiro. Estudou até a quinta série e foi um adolescente animado, mas que viveu situações as quais lhe pesam na lembrança. Ele gostava de frequentar parques em praças para fugir da dura realidade.

“O meu refúgio da rua eram os parquinhos, porque as babás adoravam. Eu gostava de brincar com as crianças pra esquecer as coisas ruins, e isso acabou me amolecendo”, comenta.

Nova trupe

Após ficar mais de um ano preso por envolvimento em esquema de tráfico de drogas, Júlio conheceu uma trupe que se apresentava no Posto 6 de Copacabana, em frente à praia. A Carroça de Mamulengos, ativa até hoje, acolheu o menino que fazia o povo rir.

Rapidamente ele já estava fazendo parte dos espetáculos e começou a ganhar destaque com pernas de pau, quando ganhou o apelido que o representa atualmente. O grupo viajou pelo Brasil e veio parar em Brasília, local de onde Mandioca não saiu mais.

Júlio César se apresenta no Parque da Cidade. Foto: Malu Carvalho

Júlio, por ter vivido metade de sua vida em situação de rua, sempre busca ajudar as pessoas que se encontram nas mesmas condições que ele já esteve.

Eu vejo um rapaz, jovem, jogado na rua todo drogado todos os dias. Um dia levantei ele do chão e falei que ia dar oficina pra ele poder se apresentar e sair disso. Ofereci meu material e ele realmente conseguiu algum dinheiro por um tempo, mas logo depois voltou pras drogas. Eu sou grato porque agarrei a única oportunidade que recebi. E não larguei nunca mais.

Júlio César

Os olhos brilham em um misto de saudade com tristeza ao lembrar dos conhecidos que perdeu pelo caminho. “Ao longo dos anos difíceis, eu pintava as crianças, amarrava a perna de pau… às vezes, é difícil de lembrar dessas coisas, por causa das pessoas que eu perdi. Uma das situações foi lá na Candelária onde teve aquela chacina de séculos. Quando eu vi aquela reportagem eu pensei ‘caramba, muitos deles andaram de perna pau comigo’, muitos eram meus amigos, sabe?”.

O palhaço, depois de passar fome, frio e a dor de um AVC há dois anos, só teve medo de não poder fazer o que faz. O acidente vascular cerebral dificultou suas atividades e rotina de apresentações, pois ficou meses debilitado sem conseguir se movimentar.

Os filhos, que moram com ele, ofereceram apoio, e os amigos artistas fizeram uma campanha de arrecadação para que Júlio pudesse ter meios de comprar comida. Como não podia voltar às atividades, dois filhos, também palhaços, o convidaram para prestigiar uma apresentação.

Ao voltarem de uma lanchonete, se depararam com o pai fazendo o show. “Depois disso, eu tive certeza que nunca mais ia parar. É o que desejo pra eles também”.

Foto: Malu Carvalho

Frutas no sinal

Em Taguatinga, José Rubens, de 62 anos, vende frutas nos semáforos. Ele teve seu primeiro filho aos 24 anos. Nascido em Florianópolis (SC), mudou-se para o Distrito Federal há 3 meses com o objetivo de encontrar mais possibilidades de sobreviver e sustentar os quatro filhos, que têm entre 6 e 18 anos. A filha mais velha tem 38.

Como pai, ele procura passar tempo com seus filhos e oferecer o melhor que pode. Eles estão matriculados em uma escola pública localizada em Recanto das Emas, região administrativa em que reside. Apesar das dificuldades que enfrenta, José é religioso e agradece a Deus por tudo o que recebe:

“O que Deus dá é abençoado, né? Não vou te falar que eu tenho muito, senão eu tô mentindo. Tem dias que Deus me dá R$ 50, R$ 70 reais. Falta comida, mas tudo o que Ele dá é abençoado”, diz.

Para celebrar este dia dos pais, ele pretende reunir sua família na igreja que frequenta todos os dias da semana. Como símbolo da sua fidelidade, José anda acompanhado da sua “Chave da Vitória”, que representa a igreja e sua fé em Deus.

Também em Taguatinga, Francisco Veranilson da Silva, de 47, que mora em Recanto das Emas, vende garrafas d’água, bolas, toalhas, entre outros itens.

Foto: Ana Carolina Pessoa

Tudo o que couber nas mãos. Está aí a renda da família, incluindo o sustento da filha de 17 anos de idade. Por conta do tempo de trabalho nas ruas, ele não consegue passar o tempo que queria com ela. Mas espera que o trabalho, sem parar e incansável, seja a sua redenção.

Reportagem de Malu Carvalho (em Brasília), Ana Carolina Pessoa e Vinícius Milhomem (em Taguatinga)

Edição de Luiz Claudio Ferreira

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *