Um relatório produzido pelo setor de inteligência da Secretaria de Segurança do Distrito Federal dois dias antes do ataque às sedes dos três Poderes, em Brasília, alertou autoridades locais para a possível invasão de órgãos públicos e “a intenção de prática de atos de violência” no domingo (8).
A Folha teve acesso ao documento, enviado na sexta-feira (6) ao gabinete do então secretário de Segurança do DF, Anderson Torres, e ao órgão responsável por planejar atividades operacionais da área.
O relatório de inteligência aponta que autoridades de segurança do Distrito Federal tinham conhecimento da organização dos atos, das motivações e dos planos dos manifestantes dias antes do ataque –incluindo a possibilidade de depredação.
A partir do monitoramento de grupos em aplicativos de mensagens, o documento cita a realização de atos em Brasília dos dias 6 a 8 de janeiro, “com vinda de caravanas de outros estados, em oposição ao atual governo federal”.
O relatório classifica a convocação dos protestos como alarmante e reproduz imagens distribuídas nas redes que descrevem as manifestações como a “tomada de poder”.
“As divulgações apresentam-se de forma alarmante, dada a afirmação de que a ‘tomada de poder’ ocorreria, principalmente, com a invasão ao Congresso Nacional”, afirma o relatório da divisão de inteligência.
Em seguida, o documento destaca que os manifestantes propunham não só a invasão do Congresso, mas a ocupação de “órgãos públicos que representam os três Poderes”, o que indica que autoridades sabiam da ameaça também ao Palácio do Planalto e à sede do STF (Supremo Tribunal Federal).
O documento foi elaborado com o objetivo de “assessorar o planejamento integrado de segurança pública” e a “tomada de decisão” diante dos atos.
Em depoimento à Polícia Federal nesta sexta (13), o governador afastado Ibaneis Rocha (MDB) afirmou que apenas o secretário de Segurança tinha acesso aos dados de inteligência sobre a manifestação. Ele disse ainda que recebeu informações da pasta de que os atos seriam pacíficos.
O então secretário Anderson Torres, que havia sido ministro da Justiça do governo de Jair Bolsonaro (PL), viajou para os EUA no sábado (7) –um dia depois do envio do relatório e um dia antes do ataque.
No domingo, o secretário-executivo da pasta, Fernando de Sousa Oliveira, que exercia o cargo na ausência de Torres, disse ao governador que a situação era tranquila e que havia negociado com os manifestantes para que eles descessem em direção à praça dos Três Poderes “de forma pacífica”.
“Nossa inteligência está monitorando e não há nenhum informe de questão de agressividade, ligada a esse tipo de comportamento”, declarou Oliveira.
A Folha entrou em contato com Fernando de Sousa Oliveira e com o advogado de Torres. Nenhum dos dois se manifestou até a publicação desta reportagem.
O risco de atos de violência também é assinalado no texto pela possível participação de CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores) e publicações que falavam em “sitiar Brasília”.
Para os agentes de inteligência, essas informações denotavam “a intenção de prática de atos de violência no dia 08JAN23”, data dos ataques. Apesar do alerta, não houve procedimento de revista de manifestantes pela Polícia Militar no dia dos atos.
Boa parte das afirmações do relatório se concretizou dois dias depois, mas os responsáveis pelo documento apontavam inconsistências e levantam dúvidas que poderiam minimizar o risco dos atos.
O texto aponta que não havia dados específicos sobre dia, hora e local das mobilizações, incluindo questionamentos sobre o cronograma de deslocamento de ônibus para a capital.
“Até o momento, não se verifica chegada de caravana em Brasília relacionada à mobilização em questão”, afirma o documento.
O relatório aponta ainda que a convocação dos atos e a “adesão de público geral” poderia ficar comprometida devido ao “prazo exíguo” de convocação, iniciado no dia 3 de janeiro.
O setor de inteligência aponta ainda o fato de que um dos organizadores do ato alegava ser líder de um movimento de caminhoneiros, mas “não tem representatividade junto ao segmento”.
Não há evidências, no entanto, de que apenas caminhoneiros tenham liderado os ataques do último domingo. O próprio documento fala na organização feita por “grupos autodenominados patriotas” e “segmentos do agronegócio”.
O comportamento dos responsáveis pela Secretaria de Segurança Pública levou o ministro Alexandre de Moraes, do STF, a determinar a prisão de Anderson Torres. A decisão cita “omissão e conivência” do então chefe da pasta e do comandante-geral da PM, devido à falta de preparação para os atos.
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou que manteve contato com as autoridades do DF, mas disse que houve uma mudança de planejamento no dia do ataque, o que permitiu a descida dos manifestantes até o Congresso Nacional.
A descrição feita no relatório do dia 6 mostra que o setor de inteligência tinha informações consistentes e detalhadas sobre os planos dos golpistas.
“Entre as eventuais ações estariam invasão a órgãos públicos e bloqueio em refinarias e/ou distribuidoras de combustíveis”, afirma o relatório.
Nos dias 8 e 9, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) chegaram a se concentrar na frente de pelo menos três refinarias, em São Paulo, Paraná e Amazonas, com o objetivo de provocar desabastecimento de combustíveis, mas não conseguiram impedir a saída de caminhões.
Durante a preparação do relatório, o grupo de inteligência da Secretaria de Segurança Pública fez um monitoramento do acampamento montado em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília, onde se concentravam apoiadores de Bolsonaro que faziam manifestações em tom golpista desde o fim da eleição presidencial.
Imagens aéreas do local foram incluídas no documento. O texto destaca que, com a posse de Lula, houve “intensa desmobilização” no acampamento. Aponta ainda que um grupo permanecia no local naquela data.
“Em que pese a mencionada desmobilização, nota-se convocação para novas mobilizações pelas redes sociais e previstas para ocorrer em Brasília contra o atual governo federal”, destaca o relatório.
O trecho indica que a divisão de inteligência reconhecia a chance de manifestações apesar da saída de apoiadores de Bolsonaro do acampamento. O texto fala na “participação de milhares de pessoas e vinda de caravanas” naquele fim de semana.
Os agentes de inteligência relataram também a possibilidade de uma “greve geral” convocada para o dia 9 de janeiro. Ainda que o anúncio tenha sido feito nas redes sociais, a paralisação não se concretizou.