No Brasil não falta comida, mas sobra pobreza, afirma Bela Gil

A chef e ativista pela agroecologia Bela Gil e a bartender Néli Pereira inauguraram os debates da Feira do Livro, em São Paulo, falando sobre as implicações políticas e culturais da comida e da bebida na mesa dos brasileiros.

“Precisamos de vários tipos de acesso para que a comida chegue ao nosso prato, mas um dos elementos centrais é o tempo”, afirmou Bela Gil no palco, montado na entrada do Estádio do Pacaembu. O local estava cheio na manhã desta quinta-feira (8).

A autora de “Quem Vai Fazer essa Comida?” (Elefante) defendeu que a alimentação saudável deveria ser o padrão. Ela, porém, afirma que isso é impossibilitado pela falta de educação alimentar e acesso geográfico e tecnológico.

Em muitas regiões, grandes deslocamentos são necessários para ter acesso à comida, enquanto algumas comunidades têm alimento, mas carecem de gás, panelas, água encanada ou fogão para cozinhar.

Ela citou o projeto Um Milhão de Cisternas, que possibilitou acesso à água no semiárido do país para que as pessoas pudessem cozinhar. “A pobreza faz a fome, alimento não falta”, afirmou a apresentadora, frisando a diferença entre alimento saudável, produzido pela agricultura familiar e commodities, produto do agronegócio.

“Cozinhar na nossa sociedade é um trabalho doméstico não remunerado”, defendeu a chef diante de um público bem dividido entre homens e mulheres, fato que ela considerou inédito.

“Esse trabalho precisa ser valorizado para que possamos ter tempo de cozinhar. Sem ele, nenhum outro trabalho seria possível. Ninguém sai de casa com ela cheia de pó e louça suja. Alguém precisa passar o café, e geralmente quem faz isso são as mulheres”, afirmou.

“Precisamos beber menos e beber melhor. Se a indústria lança algo novo, todo mundo toma”, criticou Néli Pereira, que lançou “Da Botica ao Boteco: Plantas, Garrafadas e a Coquetelaria Brasileira” (Companhia das Letras).

No livro, ela destrincha alguns ingredientes para a criação de coquetéis, apresentando estudos sobre a toxicidade de algumas ervas e seus usos seguros.

“O álcool é menos perverso que o açúcar, porque é uma droga silenciosa. Você vai comendo e comendo. Quando vê, precisa amputar um pé pelo diabetes”, completou Gil.

Ela cita que uma latinha de refrigerante possui cerca de 35g de açúcar, o que equivale a cerca de 132% do valor que a OMS, a Organização Mundial da Saúde, recomenda consumir por dia.

Pereira contou que, quando começou o bar Zebra ao lado do marido, sentiu desconfianças algumas vezes por parte de clientes — especialmente homens — sobre seus conhecimentos como bartender. Isso a levou a trazer elementos que considera femininos para o ambiente, como um herbário no balcão.

“Muitas pessoas já me falaram que as ervas as lembraram de suas avós. Existe uma memória afetiva relacionada ao feminino, que acho que vem das ervas. Essa coisa servil de que o cliente tem sempre razão não cola. Não há abusos de nenhum tipo dentro do meu bar”, afirmou, sob aplausos da plateia.

O trabalho doméstico rende 11 trilhões de dólares por ano, o que representa 13% do PIB mundial — dados que estão no livro de Gil e que apontam, segundo a autora, que a atividade subsidia o sistema capitalista no qual vivemos. “Estou reivindicando uma distribuição justa do valor desse trabalho. As mulheres produzem e sustentam a força de trabalho”, defendeu.

Quando questionada sobre quais livros a inspiraram, ela citou “A Queda do Céu”, do xamã Davi Kopenawa. “O problema é que o ser humano acha que não é natureza e quer dominá-la. Nossos bares e cozinhas devem ser uma extensão do pensamento de comunhão com a natureza, entendendo nossa responsabilidade dentro dela”, concluiu.

A Feira do Livro conta com mesas abertas ao público até domingo, na praça Charles Miller, em São Paulo.

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