A guerra russo-ucraniana completou ontem 500 dias no leste europeu. São pouco mais de 16 meses de crises humanitárias e conflitos entre dois países que defendem a titularidade da região. Em meio à batalha entre as duas nações está a brasiliense Lydiane Bruno, que vivenciou aproximadamente metade do período do conflito in loco, ajudando em uma missão de suporte com a equipe de Recursos Humanos da organização humanitária da Cruz Vermelha.

Devido à urgência de auxílio à crise gerada pela guerra, ela foi convidada a fazer parte de uma missão especial pouco após o início dos bombardeios e invasão da Rússia na Ucrânia. Ela foi para a capital Kiev em maio do ano passado, passou cinco meses e retornou em setembro. Em maio deste ano ela voltou para a cidade e permanecerá até novembro.

A tensão e incerteza constantes no país é um dos principais desafios para superar ao longo dos dias na região. “Muitas vezes não conseguimos dormir devido aos alarmes e às vezes passamos a noite em abrigos”, contou com exclusividade ao Jornal de Brasília.

“É um contexto e um trabalho muito desafiador por ser um conflito armado internacional. […] Temos os alarmes com bastante frequência, que soam quando alguma coisa está invadindo o espaço aéreo. Isso pode significar que está vindo algum míssil, ou que algum ataque vai acontecer em algum lugar. Pode ser que a gente precise ir para um abrigo”, relatou.

O soar dos alarmes acontece durante o dia, mas também muito durante a noite, de acordo com Lydiane. “Temos que lidar com a tensão o tempo inteiro, mas ao mesmo tempo eu vejo que não só eu, mas muitos dos meus colegas são muito resilientes”, disse. “No dia seguinte [aos alarmes] pela manhã, está todo mundo aqui. Todo mundo bem cansado, mas tentando trabalhar e entregar a resposta humanitária, que é o nosso maior objetivo estando aqui.”

A realidade do conflito passou a ser comum para a brasiliense, que precisou se adaptar às circunstâncias de incerteza e tensão diárias. Os primeiros dias, porém, foram de terror. “Quando cheguei no ano passado, na primeira noite em que escutei o alarme soando para as pessoas buscarem abrigo, eu senti medo. Justamente porque acho que foi a primeira experiência saindo do meu contexto de Brasília, por exemplo, para esse contexto daqui. Foi uma grande mudança, tive medo do desconhecido.”

A ida para o abrigo, entretanto, se tornou algo comum. Ao soar o alarme, Lydiane procura o que precisa fazer para se dirigir ao local seguro o mais rápido possível, procura notícias dentro dos portais internacionais para se informar e segue em direção ao reduto juntamente com outros colegas que enfrentam o mesmo contexto na capital.

“Estamos tomando um risco consciente e fomos devidamente treinados para uma resposta para quando vier uma situação de emergência, sobre o que precisamos fazer. Isso acaba nos gerando uma sensação maior de segurança porque temos clareza do que fazer em determinadas situações”, disse.

Choque de realidade

Durante os cinco primeiros meses que passou dentro da capital da Ucrânia, Lydiane destacou que acompanhou um pouco da mudança entre os primeiros dias de conflito e os dias subsequentes até o retorno para Brasília, no fim de setembro do ano passado. Um dos aspectos que chamou a atenção da brasiliense foi a quietude das ruas, que não tinham cidadãos caminhando, muito menos crianças brincando nas praças e brinquedos espalhados pela cidade.

Ao longo dos meses, porém, percebeu que pouco a pouco a população foi tentando retornar à vida comum diária, passando a andar nas calçadas e visitar os locais de convivência comum. “Isso me marcou muito porque era algo muito corriqueiro de se ver no Brasil, mas aqui não tinha. Vi que aos poucos as pessoas tentavam retomar as suas vidas, tentando de alguma forma terem qualidade de vida apesar do contexto ser muito desafiador”, descreveu.

Outro aspecto que a fez perceber a diferente realidade de Brasília foi o toque de recolher, obrigatório para todos os cidadãos à noite. Quando chegou no ano passado, o horário limite para estar em casa era 22h30, mas foi estendido para às 23h45 quando retornou neste ano. “Estou sempre às 23h em casa e não posso sair – toda minha rotina está em volta disso e é uma realidade que eu não tinha que lidar em Brasília, quando eu podia sair e voltar a hora que eu quisesse”, disse. “Passei a apreciar coisas muito simples.”

No trabalho realizado dentro da Cruz Vermelha como recrutadora, uma das funções é fazer entrevistas de candidatos às vagas disponíveis na organização humanitária. Acompanhar e escutar as histórias dos candidatos é também uma maneira de observar as diferenças entre o trabalho realizado na Ucrânia com a mesma função em Brasília. De acordo com Lydiane, os desafios são profundos.

“Conheço pessoas que perderam tudo [entre membros da equipe] e tive candidatos que foram chamados para a entrevista, mas que não puderam participar porque foram recrutados para ir para a linha de frente. Então essas histórias acabam me marcando. Isso é o que mais me marca e de alguma forma vou carregando isso [no dia a dia]”, destacou.

Um dos subterfúgios que encontrou para se conectar com a cultura local da Ucrânia e para se desligar dos ambientes tensos de trabalho e de rotina em meio aos bombardeios foi na costura, que é muito tradicional no país. “Eu era uma pessoa que não fazia nada manual, mas desde quando cheguei tenho tentado aprender o bordado, tanto como algo terapêutico, mas também como uma forma de entender a cultura, de me sentir um pouco mais conectada com as pessoas daqui”, disse. “E vamos nos apoiando da maneira que podemos.”

Cenários destruídos

Uma das memórias construídas no ano passado, durante os cinco primeiros meses que passou em Kiev, foi a rotina construída para ir do apartamento alugado anteriormente para o escritório da Cruz Vermelha. Lydiane costumava sair de casa e pegar o caminho mais longo para o trabalho para apreciar o caminho, que em determinado momento seguia dentro de um parque da cidade. “Era o caminho mais bonito”, descreveu.

“Mas uma semana ou duas depois de eu sair daqui no ano passado, esse parque foi atacado e ficou parcialmente destruído. Foi algo bem impactante”, contou. “Muitas coisas mudaram. O conflito continua com muita tensão – ou até maiores” continuou. “Resolvi visitar minha antiga rua [onde morava ano passado] e vi um prédio completamente destruído, que acho que foi bombardeado, e outro que era bem grande também foi parcialmente destruído.”

Os desafios ainda são muito grandes, segundo Lydiane, e talvez ainda cresçam com o desenvolver dos conflitos e acontecimentos decorrentes da guerra, tanto entre os dois países combatentes quanto com outros agentes internacionais de influência no conflito. “As pessoas estão mais cansadas. Não são sustentáveis toda essa tensão e os desafios do contexto no longo prazo”, opinou.

De acordo com ela, o impacto visual das destruições geradas pela guerra soam, assim como o alarme do país, “como um lembrete para mim e para as pessoas que estão aqui de que isso não acabou ainda”.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *